Casa de Cultura Jaime Lobo e Silva
29 de outubro 2023
por Amélia Resende
Domingo, dia 29 de outubro, a meteorologia era adversa. Previa-se mais uma tempestade, com fortes chuvadas, falava-se mesmo em rio diluviano e grandes rajadas de vento. As mais temerárias, eram sobretudo mulheres seniores, candidatas à estrada. Falharam algumas, outras mantiveram-se firmes. Tinham também a responsabilidade de assegurar boleia a outras tantas. Houve as baixas por Covid e um forte motivo para outros tantos/as não saírem de Lisboa: a grande manifestação nacional de apoio à Palestina, pela paz no Médio Oriente.
Tudo isto para dizer, que não obstante todos estes contratempos, foram 19 as presenças no anfiteatro naquela tarde de Outubro.10 entre as amigas/os que tinham vindo de propósito de Lisboa e de outros lugares mais longínquos e 9 “arrebanhados” na última hora nos cafés e locais emblemáticos da Ericeira. À boa maneira antiga, duas de nós distribuímos folhetos e colámos cartazes. Abordámos as pessoas na rua.
Ás 16h começou a sessão com a presença da apresentadora Alice Vieira, bem conhecida escritora infanto-juvenil com 80 títulos publicados e traduzidos em várias línguas e recém-premiada no México, as autoras Beatriz Abrantes, Maria Emília Brederode dos Santos e eu própria. Anteriormente tinha havido um almoço oferecido pela AEP 61-74 à apresentadora, às autoras presentes, à Fernanda Marques e Carlos Ribeiro (editor) que tiveram de se ausentar.
Fiz, como estava dizendo, os agradecimentos protocolares à Câmara Municipal de Mafra, à AEP, mencionei de seguida alguns aspectos relevantes da figura de Alice Vieira: uma referência incontornável para as crianças e jovens do nosso país, que fizeram dos seus livros uma das formas mais convincentes de desenvolverem o gosto pela leitura, o caso dela própria ter frequentado o Liceu Dona Filipa de Lencastre em Lisboa, à altura, só feminino, situação comum a mais duas autoras (Helena Cabeçadas e Amélia Resende) e finalmente o facto de ela própria ter fugido muito jovem para Paris, “exilando-se” temporariamente em casa da madrinha, Maria Lamas.
Foi também editora, como o seu futuro marido, Mário Castrim, do suplemento literário do Diário de Lisboa, o “Juvenil” que à época incentivou as primeiras letras/textos de muitos/as futuros/as escritores/as do nosso país.
Por todas estas razões e por hoje ser também uma figura “icónica” da Ericeira, sobre a qual discorre na sua última biografia, Alice Vieira afigurava-se como uma participante imprescindível neste evento.
Foi à volta destes pontos que a sessão se iniciou, tendo ela afirmado, logo no princípio, que era de uma conversa que se tratava e não de uma apresentação formal. Discorreu-se pois, um pouco acerca das origens e juventude de algumas das autoras, dos factos que levaram à sua tomada de consciência política e posterior partida para o exílio.
Maria Emília Brederode dos Santos tomou a palavra, para explicar de que família provinha, de tradição republicana e fazendo parte da oposição, tendo sido nesse meio que primeiro despontara o seu olhar para o mundo e posterior envolvimento na luta por uma sociedade mais justa e mais livre. Fez o histórico dos momentos principais da Resistência ao Estado Novo, desde as lutas estudantis nos anos 40 e posterior evolução, passando por 62 e 69 (onde esteve directamente envolvida), a importância das campanhas eleitorais, nomeadamente de Arlindo Vicente e Humberto Delgado em 58, a relevância das cheias de 67 para a consciencialização dos estudantes, não esquecendo outros momentos altos, como o caso do “Santa Maria” em Janeiro de 61 e a operação Vagô em Novembro desse mesmo ano.
Ao percorrer este “histórico”, sublinhou sempre que a cada onda de repressão do regime, se assistia a um ressurgimento da Resistência, como se este povo, embora oprimido, nunca tivesse deixado de lutar, mesmo nas circunstâncias mais difíceis.
Neste momento, Beatriz Abrantes pediu a palavra e leu um excerto do seu testemunho, que colocou a sessão no eixo dos Exílios directamente. Descreve o quarto/ casa em que vivia, vida privada e política apenas separada por uma cortina e pela corda em que se penduravam os cartazes ainda frescos da impressão. “O apartamento era nada”. “Salvava-nos a ideia de estarmos a fazer a Revolução”. É entre estes dois parâmetros que se mede o quarto do exílio. Tocante o testemunho. Comoveu-se e comoveu a assembleia.
Numa segunda intervenção, falou da guerra colonial e como ela tinha sido o vector que marcara para sempre aquela geração, que era a sua/ a nossa. Os companheiros: refractários, faltosos, desertores e as mulheres. Companheiras. Lutadoras por direito próprio e causas suas. Falou de Angola, da Lunda, dos diamantes, do colonialismo, do racismo. E depois deu números. Que todas estas coisas têm nomes e números. Que falam por si. Foi um memorial aquilo que ela construiu ali para nós.
Pausa.
O passado conta-se para ficar um registo para memória futura. Mas também para interpelar o presente. Para desafiá-lo.
É esta dinâmica de temporalidade que o livro “Exílios no Feminino” pretende imprimir.
E partindo dessa premissa, abordei o historial da luta do aborto, ainda clandestino no Portugal da nossa juventude dos anos 60 e 70. Não há planeamento familiar. Alta taxa de mortalidade infantil. Nenhuma protecção à maternidade senão o assistencialismo bacoco da Igreja. As mulheres entregues a si próprias. Quando com acesso à pílula contraceptiva, esta revela-se agressiva e violenta. Como agressivas e violentas eram as condições em que as mulheres abortavam e morriam à mão de “curiosas” em salas de espera funestas. Aqui também havia distinções. O regime protegia as classes mais favorecidas, permitindo que algumas destas mulheres mais privilegiadas abortassem em clínicas privadas no estrangeiro. Mas para a maioria de todas as outras, o caminho era a incerteza. E a angústia. Muitas vezes uma maternidade não desejada. É deste ponto que partimos, umas para uma luta “no interior”. Outras, para o exílio. E é “lá fora”que algumas de nós se mobilizam e acompanham as lutas das suas companheiras em França, na Bélgica, na Suíça, na Holanda, na Suécia. Pela contracepção livre e gratuita. Pelo direito ao seu corpo e à escolha da maternidade. Pela exigência das creches. Pelo fim da discriminação salarial.
E é com este esteio que algumas de nós exiladas, contribuímos neste e noutros campos, a educação, por exemplo, para a construção da democracia no nosso país, após o 25 de Abril, tendo como alavanca a experiência de luta, de formação nos países que nos acolheram.
Ao dilema: ficar cá dentro ou ir lá para fora, que a um certo momento surgiu no debate, responderam-se com argumentos tanto da parte das autoras como da parte de alguns/ mas participantes da assistência. E nesta dialéctica de dentro e fora, de mais solidariedade, menos solidariedade, de passado e de presente, ficou o desafio de colocar às novas gerações a eterna questão:
- Será que aquilo que te oprime não te leva a continuar o caminho e a lutar?
Será que se existe no teu país uma lei que despenaliza a interrupção voluntária da gravidez, é lícito haver funcionárias de hospitais públicos que venham dizer, alto e bom som : Aqui nós somos amigas dos bebés? Que 2/3 dos mesmos hospitais se recusem a fazê-la ou a dificultem por objecção de consciência?
É contra estes e outros obstáculos, contra estas provocações, contra o retrocesso a que começamos a assistir em várias partes do mundo dos direitos das mulheres e das pessoas que as lutas do passado referidas no “Exílios no Feminino” se tornam presentes.
Hoje. Como ontem. Vamos continuar.
Novembro de 2023.
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