Neste dia, há cinquenta anos, em conjunto com franceses e de outras nacionalidades solidários, portugueses, na sua maioria jovens, imigrantes, exilados políticos, refratários e desertores que recusaram a guerra colonial, mostraram-se à vista de todos, em Paris, na sequência do 25 de abril de 1974, em Portugal, numa manifestação organizada contra a ditadura portuguesa e apoiando os militares revoltosos.
Inicialmente, o 25 de abril foi considerado pela camada mais politizada da imigração portuguesa em França como um golpe de Estado militar, mas ainda pouco definido, que não dava muita confiança a todos os exilados e jovens portugueses imigrantes em em França.
Temia-se um golpe de direita. A figura de Spínola, pelo seu passado ligado ao regime, não inspirava grande segurança, existindo uma certa desconfiança em relação aos militares que fizeram o golpe de abril.
No entanto, essa desconfiança, durante os seis dias seguintes, desvaneceu-se e, progressivamente, foram os jovens e a comunidade portuguesa em Paris ganhando ânimo. O resultado disso foi uma enorme concentração em Paris, na zona de Belleville, em que muitos jovens portugueses apareceram, alguns ainda com a cara tapada, mas em maior parte com a cara destapada e enfrentando os olhares curiosos dos passantes.
Nesse dia, como muitos outros, fui também desfilar. Levei a minha máquina fotográfica e tirei fotografias dessa manifestação. Não notei muita gente a fotografar, portanto acabou por ser uma manifestação pouco documentada.
O resultado dessas fotografias são essas que são apresentadas juntamente com este artigo.
A Primavera Marcelista
É preciso dizer que, em 1974, havia já uma certa liberalização do regime, da ditadura em Portugal, desde a nomeação, em 1968, de Marcelo Caetano como primeiro-ministro, com uma influência direta na vida dos portugueses em França, que passou a ser mais fácil, sobretudo a partir de 1969, pois os consulados de Portugal, nomeadamente o de Paris, começaram a emitir passaportes de três meses para todos aqueles que estavam indocumentados, na maior parte, os jovens com problemas militares, ou porque não tinham comparecido à inspeção, ou porque foram à inspeção militar para fazer o serviço militar, mas depois não foram incorporados, saindo para o estrangeiro, e mesmo, no caso mais grave, o dos desertores.
Com essa emissão de passaportes, muitos portugueses exilados ou com problemas militares e de documentos, começaram timidamente a apalpar o terreno, arriscando idas a Portugal legalmente para tentar ver até que ponto teriam liberdade de circulação.
Enquadro-me nesse caso. Tinha ido para França em 1966, com 17 anos, por estar envolvido em Lisboa nos movimentos associativos, na Comissão Pró Associação dos Estudantes do Liceu (CPA), e políticos, inicialmente com o PCP (Partido Comunista Português) e mais tarde com a FAP (Frente de Ação Popular), em Lisboa.
Em consequência dessas atividades, fui preso em 1965 e depois de libertado, e já em 1966, denunciado à polícia política, depois de prisões da estrutura clandestina da FAP, fiquei em risco de ser preso, pelo que decidi, também em consonância com outros camaradas da altura, em deixar o país para a França, onde fui reconhecido como exilado político, com o apoio de companheiros da FAP, e de uma organização francesa de apoio aos refugiados portugueses, a CIMADE. Na sequência, fiquei como refugiado político, reconhecido pelas autoridades francesas durante uns anos.
Quando houve a relativa liberalização do regime por Marcelo Caetano, nomeadamente, da emissão de passaportes, pedi um passaporte e arrisquei em 1970, com Rosa, a minha companheira, em vir a Portugal, arriscando para sentir se podia vir livremente ou não. Funcionou bem e durante dois ou três anos viemos sempre de férias a Portugal, durante uns dias, onde nos casamos em 1972.
Após completarmos os estudos que fazíamos na Sorbonne em Paris, eu em Economia, a Rosa em Linguística, n nossa perspetiva, em 1973/74, estávamos já a pensar vir para Portugal, para fazer uma vida normal, inclusivamente, prevendo que poderia vir a ser incorporado nas forças armadas.
Recusa da guerra colonial e o fim da ditadura
De facto, na altura, grande parte dos jovens que foram para a França, consciente ou inconscientemente, recusavam fazer o serviço militar obrigatório, em forças armadas que estavam a combater um inimigo, os povos coloniais, constituindo uma guerra que não tinha muito sentido para os jovens portugueses que viviam no campo ou nas cidades, mas que pouco tinham a ver com a situação política e militar nas antigas colónias portuguesas.
Juntamente com a fuga à miséria que se vivia em muitas regiões de Portugal, essa recusa deu origem à grande maioria da população jovem portuguesa em França, cifrando-se em centenas de milhares os jovens em idade militar que, na altura, viviam nesse país, ainda que muitos deles não tivessem grande consciência do significado político que tinha a sua saída para o estrangeiro.
As organizações políticas portuguesas, sobretudo aquelas mais à esquerda, nomeadamente o Comunista, o Grito do Povo, o MRPP e outras, advogavam a recusa da guerra colonial quando se fosse mobilizado para as colónias, incentivando a deserção, e nomeadamente a deserção com armas sobretudo quando se fosse mobilizado para zonas de guerra.
No meu caso não desertei, nem cheguei sequer a ir à inspeção para o serviço militar pois fui muito jovem para França, mas tinha uma situação de conflito por não ter ido à inspeção militar, mas nas deslocações que fiz a Portugal entre 1970 e 1974 nunca fui incomodado.
No quadro da organização a que estava ligado nos últimos anos em que estive em França, o Grito do Povo, a ideia essencial era voltar a Portugal, ser enquadrado na organização revolucionária, preparando-me para ser incorporado no serviço militar, continuando o trabalho político na tropa, contra a ditadura e a guerra colonial, eventualmente podendo posteriormente desertar ou não, se possível com armas, consoante a situação em termos de mobilização, se era ou não mobilizado para as colónias ou se ia ou não para uma zona de guerra, tudo isso podendo vir a ter uma certa influência na decisão de, eventualmente, desertar. Eu lembro-me de alguns amigos meus, nomeadamente, por exemplo, o Jaime, que era o meu colega de faculdade na altura em economia em Paris, que, depois de acabados os estudos, tomou a decisão de voltar a Portugal e de fazer o serviço militar e que, curiosamente, acabou por participar no 25 de Abril e esteve na ocupação da RTP.
Havia assim algumas linhas de atuação diferentes na altura, umas que advogavam a deserção, que era o caso da extrema-esquerda, como referi há pouco, outras que advogavam o trabalho político no seio das forças armadas (PCP).
Se bem que houvesse uma certa oposição entre estas duas linhas, de facto, tanto uma como outra acabaram por ter uma influência decisiva naquilo que foi o golpe de Estado e o êxito do Movimento das Forças Armadas. A linha política de trabalho político nas Forças Armadas teve uma influência determinante na própria consciencialização dos militares de abril e foi também o resultado de muito trabalho político feito por vários partidos dentro das Forças Armadas.
Por outro lado, como é reconhecido por muitos dos capitães de abril, o facto de existir deserção, de muitos jovens recusarem a guerra não se apresentando à inspeção ou à incorporação no serviço militar obrigatório, também acabou por ter uma influência importante, na medida em que a deserção criava um clima de desmotivação entre os soldados e oficiais fazendo crescer o descontentamento e a vontade de não participar numa guerra injusta contra os povos das colónias que queriam a independência.
Também o facto de haver muitos jovens que recusavam o serviço militar ao emigrar clandestinamente, desertando ou não se apresentando para serem incorporados, em número de centenas de milhares também acabou por criar um problema grave de efetivos disponíveis para preencher as necessidades da organização militar.
As Forças Armadas tinham grandes problemas não só em ter o número adequado de oficiais do quadro permanente, tornando-se necessário recorrer a oficias milicianos para completar este quadro, como, por outro lado, tinha uma falta grave de soldados para preencher os escalões mais básicos garantindo a composição das forças militares necessárias para fazer a guerra.
Este fator teve assim uma influência decisiva na própria desmotivação das Forças Armadas, na consciência por parte dos militares de que a guerra não poderia jamais ter uma vitória militar e na busca de soluções alternativas que acabaram por passar pela opção dos militares de abril em derrubar o regime pela força.
Esta manifestação em Paris traduz um pouco o espírito de libertação que os jovens sentiram na altura, muitos deles com pouca consciência política ou com uma consciência política despertada muito recentemente.
Para além dos exilados por motivos de perseguições políticas, provavelmente quem desertou e muitos dos que recusaram a sua incorporação no serviço militar o fez por motivos políticos. Mas um número muito significativo dos que optaram por não vestir a farda para defender interesses alheios ao povo talvez o tenha feito sem grande consciência política da situação da guerra colonial e da ditadura.
O trabalho político nas associações de trabalhadores portugueses
Deve ser dito que muito do trabalho político feito pelas organizações de esquerda teve uma influência decisiva na mobilização, na consciencialização política dos jovens imigrantes em França que simplesmente saiam a salto de Portugal para não serem incorporados numa guerra que não lhes dizia respeito ou para tentar melhorar a sua situação económica.
Isso foi feito muitas vezes através da atividade política em associações de trabalhadores portugueses em França. Eu estive muito ligado a uma associação portuguesa de trabalhadores em Gentilly no sul de Paris, dinamizando e participando na distribuição de jornais anti ditadura como o Alarme, organização de apresentação de filmes, espetáculos musicais, peças participativas do Teatro Operário, influenciado pela linha de Bertold Brecht, com a orientação de Hélder Costa e em particular em Gentilly de Cândido Ferreira, tudo isso contribuindo fortemente para motivar e para consciencializar os jovens que frequentavam, na sua maioria, esse tipo de associações.
Aconteceu em Gentilly como referi, mas também em Montparnasse, Issy les Moulineaux, e outras regiões de França, como Grenoble e Aix en Provence, e outros países da Europa, Bélgica, Holanda, Luxemburgo, Dinamarca, e Suécia, paralelamente aliás com a criação de Comités de Apoio aos Desertores em todos esses países ou regiões.
Esse tipo de trabalho político resultou na consciencialização de muitos jovens que constituíam uma percentagem elevada dos imigrantes portugueses em França e que, basicamente emigraram por não querer fazer o serviço militar. Daí que esta manifestação foi um bocado uma explosão de toda essa juventude que começou, naqueles seis dias, a confiar no movimento das Forças Armadas e que se apresentaram muitos deles com a cara destapada nessa manifestação.
É curioso que, revendo algumas das fotografias dessa manifestação de 1º de maio 1974 em Belleville em pormenor, o que foi feito no quadro, por exemplo, do filme Le Mains Invisibles, de Hugo dos Santos, descobrimos nessas fotografias alguns dos militantes, nomeadamente, por exemplo, do Grito do Povo, jovens que por vezes não se conheciam entre si, pois a sua atividade era clandestina, mas que, efetivamente, se mobilizaram e apareceram, alguns de cara descoberta, outros não.
Curiosamente também alguns dos presentes nessa manifestação do 1º de maio 1974, com o objetivo de preservar memórias dos acontecimentos para as novas gerações, foram em 2015 os promotores desta nossa associação dos exilados políticos portugueses de 61 a 74, AEP61-74 Vasco Martins, Fernando Cardoso, Carlos Ribeiro e possivelmente outros.
Muitos deles regressaram mais tarde a Portugal, outros ficaram em França, na altura, unidos pelo espírito que se criou com o 25 de Abril.
José Augusto Martins (texto e fotos)
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