Desertar em nome da paz

Fernando Mariano Cardeira recusou combater na guerra colonial: “Ninguém é traidor da pátria por isso”

Entrevista de Ricardo Rodrigues – a barca (texto e fotos)

Cresceu em Fanhais, um lugar rural no concelho da Nazaré. Teve alguma influência anti-fascista no seu crescimento?

Antes pelo contrário! Os meus pais eram trabalhadores do campo e não se falava de política. Um irmão da minha mãe, que era militar [Albertino Carreira Mariano], reparou em mim porque era bom aluno e resolveu levar-me com um primo para a Figueira da Foz, onde ele estava na altura. Tinha dez ou

onze anos e o meu tio apoiava o regime e a guerra.

Foi o seu tio a principal influência para ingressar na Academia Militar?

Sim, no sentido prático das coisas. Era uma boa carreira, entrei na Academia Militar com 18 anos e fui logo ganhar dinheiro.

É dentro da Academia Militar que começa a ter uma opinião vincada contra o Estado Novo e a guerra colonial?

Ainda no liceu, na Figueira da Foz. Não foi fácil, o meu tio chegou a incompatibilizar-se comigo quando decidi sair da Academia Militar, em 1969 [nesta altura o tio era Brigadeiro do Exército]. Faço questão de usar a palavra deserção porque desertar é recusar uma guerra e recusar uma guerra tem muita força. Criou-se a ideia de que quem desertava era um cobarde que tinha medo da guerra, para mim foi uma coisa natural. Sempre fui uma pessoa sem medo de manifestar a minha opinião, não fico com receio de perder o emprego ou os amigos e mesmo dentro da Academia Militar não me inibi de o fazer. Este processo é muito longo: tinha 14 anos quando foram as eleições com o Humberto Delgado e já ouvia coisas, depois entro no Liceu e começo a ter uma opinião vincada.

Em Maio de 1970 é mobilizado para ir para a Guiné, e em Agosto deserta. Como foi este processo?

Antes de ser mobilizado já tinha decidido que não queria a guerra, por isso é que saí da Academia Militar. Sempre disse que não faria a guerra e isso era incompatível com ficar em Portugal. As primeiras reuniões foram em Janeiro de 1970 nas Caldas da Rainha, éramos um grupo com fortes ligações porque nos conhecíamos há nove anos e a vida militar leva a que se criem esses laços de lealdade e camaradagem. Nunca gostei da tropa, mas fiz ali amigos para toda a vida, inclusive alguns que foram para a guerra. Por isso é que digo que a deserção é uma decisão individual, a pessoa tem o direito de recusar participar numa guerra. Há uma coisa acima de tudo: o direito à vida. Cada cidadão tem o direito à vida e ir à guerra é arriscar esse direito. Ninguém é traidor da pátria por isso.

Quando é que se sentiu totalmente aliviado?

Só em Paris! Nós saímos de Portugal a pé pela Serra do Gerês, depois demorámos mais de 20 horas a atravessar Espanha até à fronteira com França de autocarro. E só em Paris é que senti a liberdade porque houve muitos casos de portugueses apanhados em Espanha e a Guarda Civil devolvia-os… em Paris vivemos pouco tempo, mas com grande felicidade.

Acaba depois por se fixar na Suécia. Porquê essa escolha?

Foi um encontro do acaso. Estávamos em Paris há poucos dias e cruzei-me com um antigo colega do Instituto Superior Técnico, quando me viu disse logo: “Já sei, cavaste-te!”. Ele tinha acabado de beber café com o já falecido Fernando Baginha que estava na Suécia há um ano e ficámos de boca aberta quando soubemos o apoio que nos davam lá. Nos primeiros três meses davam dinheiro para alimentação, vestimenta, etc, porque o governo sueco apoiava os movimentos de libertação em África.

A despedida quando saem de Portugal foi difícil?

Já lá vão 54 anos, mas tudo está bem vivo na nossa memória. Essa é a parte difícil: o desertor é mal visto pela sociedade, e às vezes até pela família. Não foi fácil, alguns já eram casados e com filhos, mas fomos amadurecendo a ideia. Em Maio marcámos a data de ida [23 de Agosto] e nesses meses houve alguma ansiedade. Mas hoje faria igual, sem dúvida.

Como é que se explica um país que não queria a guerra, mas que via com maus olhos quem não queria ir para a guerra?

Não concordo com essa afirmação, havia muita gente que queria a guerra. No início da guerra colonial batiam-se palmas aos barcos, só a partir de 1965 é que as coisas começam a mudar, quando começam a vir os caixões e os jovens sem pernas e sem braços… a Europa tem uma história de dominação das colónias e o português ficava orgulhoso de sermos um país tão grande!

Foi fácil a adaptação à Suécia?

A nossa estadia na Suécia passa por duas fases: primeiro o deslumbramento por vivermos num país democrático e livre ao invés de Portugal que era um país cinzento. Mas depois começaram a aparecer os problemas: eu era de engenharia, mas não tinha diploma. Fui para Lund, no sul da Suécia, para terminar o curso, mas era muito difícil estudar em sueco sem dominar a língua. Fomos pais em 1972 e a nossa vida mudou, acabei por desistir do curso em 1973 [viria a terminar em Portugal em 1977]. Havia falta de perspectivas e para sobreviver fiz tudo e mais alguma coisa, aqueles trabalhos ligados à restauração, agricultura, éramos tipos desenrascados!

Mesmo com todas as dificuldades, intensificam a luta contra o regime. Essa divulgação do que se passava em Portugal era tão importante como ir para África?

Claro! A primeira coisa que eu fiz para terminar com a guerra foi desertar, porque sem homens não se fazem guerras.  Simples! Em 1971 criámos o Comité de Apoio aos Desertores Portugueses porque quem quisesse ir sabia que tinha ali um apoio e foi muito útil! Dávamos apoio a quem recusava a guerra, houve pessoas que dormiram em minha casa até estarem orientados. Por isso, mantenho a luta pela dignificação da atitude da deserção. Os desertores são tão combatentes da liberdade como quem passou dez anos em Caxias. São situações diferentes, mas todos lutaram pelo mesmo objectivo.

Lembra-se como recebeu a notícia do 25 de Abril?

A partir de 1973 o 25 de Abril era inevitável, era uma questão de tempo. Tinha amigos na tropa, ainda hoje ao almoço encontrei o Duran Clemente! E quando vejo o 16 de Março [Levantamento das Caldas] fico realmente entusiasmado! Por isso, quando se dá a revolução, não foi uma surpresa para mim. Embora a presença de algumas pessoas, nomeadamente o Spínola que era um militar muito conservador, nos fizessem pensar que não seria assim tão simples. Até ao 1.º de Maio foi uma semana de muita expectativa, com a alegria da libertação dos presos políticos, e só no 1.º de Maio é que senti mesmo que as coisas tinham mudado. Foi uma alegria muito grande, o 25 de Abril mudou este país, há quem não goste, que não gostem!

Em 2020, 50 anos depois, lançou o livro “Crónica de uma deserção – Retrato de um país”. Fê-lo para memória futura ou sentiu necessidade de combater movimentos saudosistas?

Foi para deixar o registo para memória futura, incentivado por amigos. Meti mãos à obra em 2018 e andei quase três anos de volta do livro. É um documento histórico, não quis romancear. Tenho muito orgulho neste livro. O crescimento de movimentos fascistas preocupa-me e o livro é também uma arma contra isso, mas não foi feito com esse objectivo.

Presidiu até há poucos meses ao movimento cívico “Não Apaguem a Memória” [NAM], acho interessante o nome. Começa a faltar a memória?

As pessoas estão a esquecer-se. Os mais jovens têm de saber o que se passou para ficarem mais capacitados para entender o que se passa à nossa volta e também para intervirem na política. Não apagar a memória é reavivar a história e estas associações são muito importantes. O Museu do Aljube, que está numa antiga prisão, foi impulsionado com o contributo do NAM, e estamos neste momento a tentar criar um Museu da Resistência na antiga prisão da PIDE, no Porto, que actualmente é um Museu Militar. Houve quem quisesse colocar uma unidade hoteleira no Forte de Peniche e isso era apagar a memória.

Mantém contacto com os oficiais que desertaram consigo?

Infelizmente três dos dez já morreram, mas mantemos todos o contacto. É sempre bom quando estamos juntos.

Ainda se sente com força para lutar contra as guerras?

Olhe, a Palestina é uma coisa que me toca porque é uma injustiça enorme. Só vejo mortes e destruição.

Como é a sua vida actualmente?

Tento manter-me activo intelectual e fisicamente em torno destas questões. Ainda ontem fui à apresentação de um livro no Museu do Aljube, com muito calor, e isto já exige esforço da minha parte, mas tento manter-me activo. E faço muita investigação pessoal, porque eu sempre fui engenheiro e cumpri o meu dever de ofício, mas é isto que me dá prazer. E felizmente tenho sempre coisas para fazer.

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